segunda-feira, 26 de junho de 2017

Surpresa como renovação

            Como sempre, nada diferente de todos os outros dias, às 12h o almoço tinha sido servido, sua esposa, Graça, colocara o prato, os talheres, o copo e a xícara; para ao término da refeição servir o café forte, quente e com pouco açúcar; e então João sai do banho e senta-se para dar início aquele ritual diário.
            Fez sua prece e agradeceu ao seu santo de devoção, São Miguel Arcanjo, pela comida, por sua saúde, pela saúde da sua esposa e dos seus filhos. Sua esposa sabia que ele terminaria o almoço, começaria a tomar o café e quando da metade da xícara ele pediria licença, pegaria seu maço de cigarros de palha e sentaria na varanda de frente para o jardim.
            E, como ela o observava há alguns muitos anos, 32 anos, tudo ocorrera em conformidade com seu pensamento. João sentou-se em um banco de madeira encostado à parede, acendeu seu cigarro, olhou para o jardim, para o sol entre nuvens, para ela e ali, como sempre, ficaria conversando consigo mesmo durante aproximadamente duas horas.
            Ah se aquele banco pudesse falar. ...
            Ele provavelmente dividiria todas as angústias, felicidades, tristezas, questionamentos de João. O banco também seria capaz de falar detalhadamente sobre o homem que se transformou ao longo dos 32 anos de amizade leal, já que o banco, mesmo reformado diversas vezes, sempre foi o mesmo.
            João não costumava trocar nenhuma rotina, nenhum hábito, absolutamente nada.
            O banco de madeira assistiu todos os aniversários de João e Graça e também assistiu todos os aniversários de casamento dos dois. Ele sabia que nessa data, aniversário de casamento, João, depois do almoço além de sentar e pensar, levantava e no próprio jardim colhia as flores para sua esposa que vinham sempre acompanhadas de uma carta escrita num papel simples:
E
U
T
E
A
M
O
            Graça sempre recompensava seu esposo com um sorriso, um beijo na testa, um abraço e dizia as seguintes palavras: Eu te amo mais meu amado!
            A essa altura, cheias de vida eram mesmo somente as flores. João e Graça já haviam experimentado muitos desconfortos em virtude da limitação física que abate qualquer um. Os sentimentos não eram mais prematuros nem muito menos imaturos. Tinham uma solidez até bastante aterrorizante.
            Tanto aterrorizante que Graça entregou-se a crença de que não era mais amor. Era costume, como todas as outras rotinas do João.
            João era fechado no convívio social. João gostava de ir para cama cedo. João gostava mesmo era de ficar em casa e curtir o ambiente com sua esposa. A única que naturalmente ficou, pois os filhos construíram suas famílias e como era de se esperar apareciam para visitas esporádicas. Mas isso, de nenhuma forma, deixava os dois chateados. Eles tinham desde o início a certeza de que isso aconteceria.
            Durante esse percurso matrimonial, João olhou para o lado, Graça olhou para o lado, mas nada que fizesse com que eles desviassem dos seus caminhos retos e entrelaçados.
            O aniversário de 33 anos de casamento aproximava-se e Graça preparava-se para receber suas flores e sua carta com o mesmo dizer de sempre. Sempre havia uma esperança de que João pudesse fazer algo diferente, mas como ele faria se todos os dias ele repetia os mesmos gestos, os mesmos hábitos!?
            Não seria diferente esse ano também!
            E então no aguardado dia, João almoçou, tomou seu café até a metade, levantou-se, fumou seu cigarro de palha, conversou consigo mesmo durante duas horas, colheu flores, escreveu a carta e foi em direção à Graça que já estava preparada para responder ao amado com as mesmas palavras.
            Ao receber a carta ela teve uma surpresa com o que estava escrito:

            Querida esposa, minha saúde já não anda nas melhores condições e então resolvi alerta-la sobre algo: VOCÊ NUNCA VIU O VERSO DAS MINHAS CARTAS! Assim que possível, faça isso! E só leia o verso desta carta quando tiver lido o de todas as outras.

            Desta vez Graça não respondeu nada e correu para ler as outras 32 cartas.
            João foi ao quarto viu sua esposa sentada na beira da cama com a caixa onde guardava todas as cartas, deu um beijo em sua testa e disse que estaria sentado na varanda até que ela acabasse de ler tudo o que precisava. E assim ele fez.

            Graça não sabia o que estava sentindo, começou a ler o verso de todas as cartas e não conteve as lágrimas. Basicamente todas elas tinham dizeres lindíssimos. Ele fazia um resumo sobre o quão maravilhoso tinha sido mais um ano viver ao lado dela e, além disso, em todas elas, no final, tinha um objetivo que ele gostaria de traçar com ela para o próximo ano.
            Graça estava em desespero, sentindo-se mal em não ter percebido esse gesto do marido. Pensou em quantas oportunidades deixou de aproveitar por não ter percebido as cartas da maneira que o marido gostaria, mas uma carta, em específico, marcou Graça.
            A carta do ano passado, a de 32 anos de casamento. Nela estava escrito:

Minha querida e amada esposa, durante todos esses anos, tentei dizer a ti que os hábitos fazem parte da vida e que a rotina nem sempre é ruim quando estamos ao lado de quem amamos. Entretanto, a quebra dos hábitos convencionais, em algumas situações, demanda o esforço de dois que se unem em um. Embora você nunca tivesse dito, eu consigo perceber a sua insatisfação com a minha postura. E, realmente, ela é cansativa, mas o que você não percebeu é que você só consegue descrever a minha rotina em detalhes porque em todos os momentos você esteve sentada me observando enquanto eu sentava e rezava para que você relesse as minhas cartas.
Você sempre quis que eu te surpreendesse e eu tentei fazer isso durante todos esses anos, no entanto, lembre-se meu amor que o passo inicial para tudo é surpreender a si mesmo.
Eu te amo demais e te amarei para toda a eternidade. Nunca é tarde.

            Graça não sentiu culpa.
Graça não ficou chateada.
Graça entendia o que ele queria dizer.
Graça sabia que ele podia falar sobre tudo aquilo em vez de escrever, mas também percebeu que as falas podem ser também unicamente habituais.
Graça estava feliz e queria mesmo era conseguir arrumar uma maneira de surpreender a si mesma e o marido.
Assim Graça correu para a varanda e quando chegou lá viu que o tempo passara e somente as flores estavam cheias de vida e então finalmente leu o verso da carta de 33 anos:
Não perca mais tempo, SURPREENDA-SE!