Como
sempre, nada diferente de todos os outros dias, às 12h o almoço tinha sido
servido, sua esposa, Graça, colocara o prato, os talheres, o copo e a xícara;
para ao término da refeição servir o café forte, quente e com pouco açúcar; e
então João sai do banho e senta-se para dar início aquele ritual diário.
Fez
sua prece e agradeceu ao seu santo de devoção, São Miguel Arcanjo, pela comida,
por sua saúde, pela saúde da sua esposa e dos seus filhos. Sua esposa sabia que
ele terminaria o almoço, começaria a tomar o café e quando da metade da xícara
ele pediria licença, pegaria seu maço de cigarros de palha e sentaria na
varanda de frente para o jardim.
E,
como ela o observava há alguns muitos anos, 32 anos, tudo ocorrera em conformidade
com seu pensamento. João sentou-se em um banco de madeira encostado à parede,
acendeu seu cigarro, olhou para o jardim, para o sol entre nuvens, para ela e
ali, como sempre, ficaria conversando consigo mesmo durante aproximadamente
duas horas.
Ah
se aquele banco pudesse falar. ...
Ele
provavelmente dividiria todas as angústias, felicidades, tristezas, questionamentos
de João. O banco também seria capaz de falar detalhadamente sobre o homem que
se transformou ao longo dos 32 anos de amizade leal, já que o banco, mesmo
reformado diversas vezes, sempre foi o mesmo.
João
não costumava trocar nenhuma rotina, nenhum hábito, absolutamente nada.
O
banco de madeira assistiu todos os aniversários de João e Graça e também assistiu
todos os aniversários de casamento dos dois. Ele sabia que nessa data,
aniversário de casamento, João, depois do almoço além de sentar e pensar,
levantava e no próprio jardim colhia as flores para sua esposa que vinham
sempre acompanhadas de uma carta escrita num papel simples:
E
U
T
E
A
M
O
Graça
sempre recompensava seu esposo com um sorriso, um beijo na testa, um abraço e
dizia as seguintes palavras: Eu te amo mais meu amado!
A
essa altura, cheias de vida eram mesmo somente as flores. João e Graça já haviam
experimentado muitos desconfortos em virtude da limitação física que abate
qualquer um. Os sentimentos não eram mais prematuros nem muito menos imaturos.
Tinham uma solidez até bastante aterrorizante.
Tanto
aterrorizante que Graça entregou-se a crença de que não era mais amor. Era
costume, como todas as outras rotinas do João.
João
era fechado no convívio social. João gostava de ir para cama cedo. João gostava
mesmo era de ficar em casa e curtir o ambiente com sua esposa. A única que
naturalmente ficou, pois os filhos construíram suas famílias e como era de se
esperar apareciam para visitas esporádicas. Mas isso, de nenhuma forma, deixava
os dois chateados. Eles tinham desde o início a certeza de que isso
aconteceria.
Durante
esse percurso matrimonial, João olhou para o lado, Graça olhou para o lado, mas
nada que fizesse com que eles desviassem dos seus caminhos retos e
entrelaçados.
O
aniversário de 33 anos de casamento aproximava-se e Graça preparava-se para
receber suas flores e sua carta com o mesmo dizer de sempre. Sempre havia uma
esperança de que João pudesse fazer algo diferente, mas como ele faria se todos
os dias ele repetia os mesmos gestos, os mesmos hábitos!?
Não
seria diferente esse ano também!
E
então no aguardado dia, João almoçou, tomou seu café até a metade, levantou-se,
fumou seu cigarro de palha, conversou consigo mesmo durante duas horas, colheu
flores, escreveu a carta e foi em direção à Graça que já estava preparada para
responder ao amado com as mesmas palavras.
Ao
receber a carta ela teve uma surpresa com o que estava escrito:
Querida
esposa, minha saúde já não anda nas melhores condições e então resolvi
alerta-la sobre algo: VOCÊ NUNCA VIU O VERSO DAS MINHAS CARTAS! Assim que
possível, faça isso! E só leia o verso desta carta quando tiver lido o de todas
as outras.
Desta
vez Graça não respondeu nada e correu para ler as outras 32 cartas.
João
foi ao quarto viu sua esposa sentada na beira da cama com a caixa onde guardava
todas as cartas, deu um beijo em sua testa e disse que estaria sentado na
varanda até que ela acabasse de ler tudo o que precisava. E assim ele fez.
Graça
não sabia o que estava sentindo, começou a ler o verso de todas as cartas e não
conteve as lágrimas. Basicamente todas elas tinham dizeres lindíssimos. Ele
fazia um resumo sobre o quão maravilhoso tinha sido mais um ano viver ao lado
dela e, além disso, em todas elas, no final, tinha um objetivo que ele gostaria
de traçar com ela para o próximo ano.
Graça
estava em desespero, sentindo-se mal em não ter percebido esse gesto do marido.
Pensou em quantas oportunidades deixou de aproveitar por não ter percebido as
cartas da maneira que o marido gostaria, mas uma carta, em específico, marcou
Graça.
A
carta do ano passado, a de 32 anos de casamento. Nela estava escrito:
“Minha querida e amada esposa, durante todos esses anos, tentei dizer a
ti que os hábitos fazem parte da vida e que a rotina nem sempre é ruim quando
estamos ao lado de quem amamos. Entretanto, a quebra dos hábitos convencionais,
em algumas situações, demanda o esforço de dois que se unem em um. Embora você
nunca tivesse dito, eu consigo perceber a sua insatisfação com a minha postura.
E, realmente, ela é cansativa, mas o que você não percebeu é que você só
consegue descrever a minha rotina em detalhes porque em todos os momentos você esteve
sentada me observando enquanto eu sentava e rezava para que você relesse as
minhas cartas.
Você
sempre quis que eu te surpreendesse e eu tentei fazer isso durante todos esses
anos, no entanto, lembre-se meu amor que o passo inicial para tudo é
surpreender a si mesmo.
Eu
te amo demais e te amarei para toda a eternidade. Nunca é tarde.”
Graça
não sentiu culpa.
Graça não
ficou chateada.
Graça entendia
o que ele queria dizer.
Graça sabia
que ele podia falar sobre tudo aquilo em vez de escrever, mas também percebeu
que as falas podem ser também unicamente habituais.
Graça estava
feliz e queria mesmo era conseguir arrumar uma maneira de surpreender a si
mesma e o marido.
Assim Graça
correu para a varanda e quando chegou lá viu que o tempo passara e somente as
flores estavam cheias de vida e então finalmente leu o verso da carta de 33
anos:
Não perca mais tempo, SURPREENDA-SE!
Perfeito!!! Quantas vezes não li os versos das cartas, quantas inúmeras vezes esperei no outro a atitude e a surpresa...
ResponderExcluirA partir de hoje vou buscar surpreender-me.
Belíssimo texto, como sempre. Obrigada.
Obrigado querida
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